Entrevista a André Stolarski

O nome Gráfica de fronteira indica que o seu trabalho se faz na fronteira de alguma coisa. De modo geral, podemos dizer que é a fronteira do design. Mas ao contrário do que se pode afirmar de algumas obras que procuram ampliar os limites dalinguagem, no seu caso a fronteira é também o limite do próprio design como disciplina, em que ele toca as artes plásticas, a música, a arquitetura, a fotografia e muitas outras. Se essa fronteira existe e existiu, é porque serve ou serviu para definir o que é design em contraposição a coisas que não são design. Quais têm sido as tentativas de definir essa fronteira e como o seu trabalho as amplia ou dissolve?

Nunca me aventurei a definir ou a traçar uma fronteira para o que é o design. Isso nunca fez parte do meu universo de preocupações, seja do ponto de vista da atividade profissional, do espaço expressivo ou da minha própria formação. Fui conduzido a esse universo da imagem que se chama design por meu interesse pela comunicação, por um lado, e pela visualidade, por outro. Ambas sempre me atraíram muito e descobri casualmente que elas se combinavam numa disciplina chamada Comunicação Visual, ensinada numa escola chamada esdi [Escola Superior de Desenho Industrial].

Assim, entrei para a esdi e ali havia uma coisa chamada design, com a qual comecei a trabalhar. Quando percebi que gostava de design já era tarde demais. Por isso, essa fronteira para mim nunca foi muito clara e definida, mas muito flexível. Gosto muito de brincar com o exercício de contaminação dessas áreas. O processo criativo reside no binômio da liberdade e do limite. Ter um limite muito bem definido é ter um muro para pular. É um exercício de liberdade criativa seja com as formas, com a tipografia ou com os processos metodológicos, no qual você consegue ter uma amplitude um pouco mais divertida.

Nesse sentido, nunca fui muito fiel ao design no sentido tradicional, linear, apesar de ter uma postura de comunicar para responder a uma demanda muito clara, que é uma atitude do design, mas talvez por caminhos que não sejam exclusivos da disciplina.

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Fale um pouco de sua trajetória desde a esdi até os dias de hoje.

Foi um caminho longo. Formei-me em 1979, mas já trabalhava antes disso. Desde a época do ginásio, antes de ter qualquer tipo de perspectiva profissional, já lidava com comunicação visual sem saber que se tratava disso. Entrei na esdi em 76 pelas mãos do Darwin Brandão, meu tio, junto com Flávio de Aquino, que acabara de deixar de ser diretor da escola. A esdi contava então com professores como Zuenir Ventura, Aloisio Magalhães e Décio Pignatari. Tinha um núcleo muito ativo e um núcleo tradicional. Foi ótimo conviver com duas posturas muito diferentes e até certo ponto antagônicas num momento incipiente da formação profissional do design no Brasil. Com isso, desenvolvi um senso crítico com relação a uma prática profissional que estava em formatação. Não fui à escola para ocupar um espaço no mercado porque esse mercado não existia. Fui responder a uma necessidade expressiva. Meu trabalho era muito ligado à ilustração e à imagem. Estava com 17 anos – aquela rebeldia juvenil na carga total – e a esdi serviu como um laboratório criativo para mim.

Curiosamente, sentia muito mais afinidade com a Bauhaus do que com a [Escola de] Ulm e brincava dizendo que era muito mais próximo da minha avó do que da minha mãe. A Bauhaus representava e ainda representa algo mais próximo do que eu faço, desse trabalho de fronteira. Ela tinha essa raiz de fronteira, mesmo do ponto de vista histórico. Na Bauhaus, o design dialogava com arte, moda, dança, fotografia, arquitetura, poesia – dialogava com a sociedade. A Europa vivia um momento de efervescência total, de fantasia e cruzamento de idéias – a arquitetura brincava com a dança, a dança com a fotografia, a fotografia brincava com a poesia… era um momento incrível.

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E depois da esdi?

Depois fui para a França. Fiquei seis anos trabalhando com ilustração e design. Já tinha saído do Brasil com uma boa bagagem conceitual e política, considerando a realidade de um país sob ditadura. Na imprensa de oposição, as imagens se valiam da ambiguidade; tinham conteúdo, reflexão e um poder de articulação não-decorativa. Na França, trabalhei muito para jornais, editoras, exposições, tive contato com vários grupos de designers ativos e importantes com quem me relaciono até hoje.

No início, meu interesse principal era estudar. Queria ir para Barcelona, Londres, Milão e acabei ficando em Paris. Depois, senti que precisava investir em outros caminhos, trabalhar um pouco mais com fotografia. Tive a oportunidade de ir para Londres em decorrência de uma exposição no [Centre] Georges Pompidou sobre Alice no país das maravilhas. Lá, conheci o Royal College of Art e vi que poderia voltar à escola depois de um bom tempo de trabalho profissional. Consegui uma bolsa de estudos e fiquei dois anos internado ali. Isso foi muito importante. Na época o departamento de design era coordenado por Gert Dumbar, um designer holandês muito interessante, com um trabalho iconoclasta, provocativo e imagético muito forte com o qual me identificava muito. Ele me recebeu muito bem e disse “junte-se a nós, faça o que você bem entender aqui”.

Comecei a fazer cinema de animação, holografia e computação gráfica, que estava começando a surgir. De certa forma eu mesmo ia editando meu curso. Fazia o que me interessava. Esses dois anos foram um mergulho mais aprofundado e maduro na questão criativa e conceitual – reforcei a certeza de que sem conceito e processo não pode haver bom resultado. A geração espontânea e o acaso podem ajudar, mas não são suficientes.

Ao sair de lá, fui convidado a trabalhar com o Gert na Holanda. Ao mesmo tempo, tinha curiosidade de ir a Nova York, onde havia estado em férias e tivera um contato rápido com pessoas que depois se tornariam muito importantes para mim: Nigel Holmes, diretor de arte da Time Magazine, e Steven Heller, doNew York Times Book Review. Tanto Steven quanto Nigel imediatamente me deram trabalho. Estive com Seymour Chwast e Milton Glaser, que também foram receptivos. Então pensei: existe um espaço para explorar que talvez acrescente algo ao meu trabalho – a relação com o mercado. Há um espaço de reflexão no mercado. Não é preciso ter dele uma visão arcaica, como se fosse inimigo da profissão – o que era uma visão sessentaeoitista do trabalho de combate. O desafio era entrar de cabeça na indústria cultural. Como sempre fui movido a desafios, banquei mais esse. Caí em Nova York de paraquedas, mas com a mesma garra com que havia ido a Paris. Procurei pessoas, fiz contatos e fui convidado a ser diretor de arte na CBS Records, na ocasião uma das maiores gravadoras dos EUA. Isso foi muito bom, porque comecei a ver como as coisas funcionavam do outro lado da mesa. Ao mesmo tempo, trabalhei como freelancer para outras empresas, como a MTV e outras gravadoras. Como nunca fui contratado formalmente, pude preservar minha autonomia. Essa relação com o mercado formal talvez seja outro ponto de fronteira em meu trabalho.

Esse primeiro ano e meio em que fiquei em Nova York foi decisivo para acabar com o estereótipo de que os EUA, por valorizarem a especialização, não dariam espaço a quem nunca havia sido especialista, tanto no estilo quanto na forma de conduta. Nunca fui fiel a um processo criativo; nunca disse “faço e vou fazer capas de livro, cartazes, marcas ou trabalhos para a televisão pelo resto da vida”, mas achava que nos EUA quem faz ilustração de tomate pode ganhar uma fortuna fazendo tomate mas nunca vai fazer caqui. Percebi que a coisa não era bem assim, que havia pessoas buscando um trabalho mais conceitual, um olhar mais transversal, mais sujo, menos disciplinado – talvez um pouco mais europeu.

Eu tinha um olhar um pouco brasileiro – não do ponto de vista do estereótipo, porque sempre fiz questão de não ser um brasileiro dos clichês e dos estereótipos nacionais. Encontrei afinidades com coisas feitas no Leste europeu e em outros cantos do mundo, sem precisar fazer araras ou abacaxis, sem deixar de ser brasileiro por isso e sem ter que arremedar o estilo internacional.

Tive alguns interlocutores muito fortes, como Jeff Keyton, importante diretor de criação na MTV, que estava surgindo. Trabalhei também para a VH1 e para o canal infantil Nickelodeon. Fiz uns trabalhos para algumas revistas com a Paula Scher, que tinha saído da CBS e abrira um pequeno escritório com outro designer antes de ir para a Pentagram. Havia núcleos muito interessantes em Nova York com os quais comecei a trabalhar. Fiz muitas coisas ao mesmo tempo e vi que a especialização não era importante, ou melhor, vi que ela não residia num estilo, mas numa atitude criativa; não no produto final de um trabalho, mas na forma de responder a uma demanda. Talvez essa seja outra fronteira: encarar o trabalho como resposta e não como produto final. O processo é muito mais interessante que o resultado. É nele que as coisas ficam mais consistentes.

Quando saí da CBS continuei com meu estúdio por algum tempo, com uma estrutura muito pequena mas muito flexível, que mantenho até hoje. Trabalhava com várias pessoas de áreas diferentes e fui agenciado anos depois, como ilustrador pelo Push Pin, como designer pelo id+A e mantinha um banco de imagens na japonesa Photonika. Desse modo, criei relações de trabalho com clientes que jamais conquistaria sozinho nos EUA ou no exterior. Comecei a descobrir a multimídia, a mídia digital, os primeiros passos da interatividade.

Então minha vida deu mais uma virada: recebi um convite para voltar ao Brasil, que aceitei tanto por razões pessoais quanto para me aproximar de um mercado que aqui eu desconhecia: o publicitário. Vim e senti logo que as possibilidades de atuação eram muito limitadas em um mercado que se balizava essencialmente pela mídia. O trabalho criativo não tinha valor efetivo; sua remuneração se diluía nas taxas de veiculação. Com isso, todo o trabalho conceitual do design ia pro beleléu. Isso hoje mudou um pouco, fruto do reposicionamento desse jogo de comunicação no mundo inteiro. Não existe mais o grande mercado monolítico nem o grande público, tudo está mais segmentado. O conteúdo vale mais, as estruturas de comunicação precisam se rearticular e o design está no centro dessa questão.

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Você afirma que o que mais lhe interessa não é o design como um fim, mas como um processo, e que, apesar da sua busca por um trabalho autoral, há no mercado oportunidades para estabelecer processos de comunicação interessantes. Tendo isso em vista, gostaria que você comentasse três dos seus trabalhos: o projeto gráfico da revista alemã Kultur Revolution, uma revista cultural combativa e questionadora, as capas e ilustrações para a revista Bravo!, também cultural mas inserida no mercado, e as capas da Newsweek, que opera no centro nervoso do capitalismo norte-americano.

A Kultur Revolution tem circulação acadêmica. É minha colaboração mais perene. Trabalho com eles há 27 anos, sempre com o mesmo tom. As primeiras capas agora são cult, mas na época eram apenas capas diferentes feitas para uma revista de esquerda. Seu público sempre foi bem-definido. Por outro lado, toda publicação acadêmica alemã da época seguia a formação germânica do design, que também era a minha formação: tipos Helvetica caixa baixa alinhados à esquerda etc. Era preciso fazer algo diferente disso para ser visto. O público da revista tinha cultura visual e era capaz de entender e articular imagens, mas os temas eram absolutamente áridos e eu era muito mal pago para fazer aquelas capas. Aquilo tinha tudo pra dar errado.

A única coisa que podia fazer era tentar usar esse espaço para me divertir e realizar um trabalho que pudesse atingir o público de forma inteligente, que me permitisse experimentar com a linguagem visual, que enviasse mensagens atravessadas e inesperadas. Se não fosse isso, não teria passado da primeira capa. Imagine um briefing dado por um professor acadêmico alemão. Era uma sinopse. Nunca pude seguir literalmente aqueles briefings. A revista deveria ter vários capistas, mas eu era o único. Precisava fazer várias capas e renovar a publicação a cada número, com temas diferentes, pelos quais precisava trafegar. Pegava fontes do construtivismo alemão, me inspirava nos passos de tango para falar sobre a esquerda ou numa colagem do Bayer para falar sobre a presença da imigração turca na Alemanha. Eu experimentava graficamente, mas todas as capas eram bem-recebidas porque o público tinha um olhar preparado para isso. Nesse sentido, a comunicação era muito clara. Tudo isso resultou em uma longa parceria criativa e uma sólida amizade.

Isso foi mantido na Bravo!. A diferença entre ambas é que aBravo! se propôs a trabalhar na área cultural prestando serviços e conseguiu se firmar desse modo. Comecei a trabalhar naBravo! desde o número 1, no momento em que ela se posicionava como uma publicação muito diferente no mercado. Eu colaborava em todos os números com uma capa interna ou com alguma outra coisa, mas como nunca tive a preocupação ou a paranóia de possuir um estilo para ser reconhecido, percebi que o meu trabalho era identificado mesmo sem ter a mesma cara, que o reconhecimento resultava de um outro tipo de expressão. Isso me permitia fazer capas que num dia eram uma colagem, no outro uma foto e assim por diante. Com isso, ganhei muita circulação e mantive a mesma atitude que tinha na Kultur Revolution e na Newsweek. A diferença é que aNewsweek tinha uma produção voltada para o mercado, aKultur Revolution dirigia-se à academia e a Bravo! supria um mercado editorial de serviços e cultura no eixo Rio-São Paulo.

A Newsweek moldava-se de acordo com um mercado mundial em todos os aspectos: na produção, na indústria, no público e na feitura da revista. No entanto, minha relação com a revista não foi muito diferente do ponto de vista criativo, da entrega, do processo, do prazo, da necessidade de comunicação e do resultado. Uma particularidade da Newsweek é que, por causa do seu enorme sistema de produção industrial, a revista possuía um diretor de arte em cada seção – três diretores de arte só para a capa. Eram quatro edições: uma doméstica, uma latino-americana, uma européia e uma asiática. Para cada uma delas, duas ou três capas com temas alternativos eram produzidas toda semana, pois dependendo dos acontecimentos uma poderia cair e a outra subir – sem contar as capas que ficavam no colete, para o caso de estourar um fato de última hora. É um volume muito grande e um ritmo muito rápido de produção, em que as pautas são fechadas às terças-feiras e a revista precisa estar pronta na sexta.

Mesmo assim, estabeleci uma relação muito boa com a revista. Ninguém jamais me ligou dizendo “quero que você faça uma capa assim”, e sim “estou com um problema e não sei qual a solução”. Então, eu passava uma idéia que podia virar um desenho, uma foto ou colagem. O resultado final era um processo a ser resolvido junto com a revista. Assim, assinei algumas capas como ilustrador, algumas como designer e outras como diretor de arte. Algumas nunca aconteceram ou foram ressuscitadas bem depois. Algumas saíam no mercado asiático mas não na Europa, outras no mercado latino-americano mas não nos EUA, outras saíam em todo lugar. Fazer colagens era muito complicado, porque um exército de advogados tinha que ser acionado para ver se havia alguma possibilidade de o dono de um olho ou da ponta de um dedo recortado reconhecer seu olho ou seu dedo e acionar a revista reclamando seus direitos de imagem. A produção industrial por trás de tudo isso é uma loucura.

A forma e a estrutura de produção mudam muito de revista para revista, mas a solução, o processo e a demanda, seja na relação com o editor da Kultur Revolution, nas ideias que enviava para a Bravo! ou nos trabalhos com a Newsweek, sempre foram muito próximos do ponto de vista criativo.

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Vou aproveitar sua menção à colagem e à indisciplina para falar um pouco mais precisamente do seu trabalho. Quando você afirmou sentir-se mais próximo da Bauhaus do que da Escola de Ulm, declarou também sua afinidade com as vanguardas do século 20. Uma das fronteiras fundamentais do seu trabalho são as artes visuais, mais precisamente o surrealismo e o dadaísmo. A ideia de indisciplina é comum a ambos. No caso do surrealismo, pela investigação do inconsciente, ou seja, daquilo que não pode ser disciplinado. No dadaísmo, pelo questionamento iconoclasta do estatuto da arte. Outro procedimento comum a ambos é a colagem. Que importância você dá à colagem e à indisciplina no design contemporâneo? Que ressonâncias pouco exploradas e poderosas podem ser incorporadas ao seu campo e ampliar suas fronteiras?

Falar de imagem é falar de ambiguidade. Se isso não acontecer, perde-se uma grande qualidade da imagem. É como falar de culinária sem falar de sabor ou falar de sensualidade sem falar de cheiro. Antes de entender a importância do surrealismo ou do dadaísmo como escolas artísticas na historiografia da arte, antes de saber o que era um e outro, sempre tive interesse pela questão da ambiguidade da imagem, que está na sua raiz.

Atrito gera energia. Essa é uma das primeiras leis da física e acho que vale para qualquer tipo de comunicação. Em nossa área de trabalho essa é uma máxima básica. A colagem permite que você associe elementos que não necessariamente combinam, que permanecem dissociados. Essa associação gera uma coisa que é mais poderosa do que a soma dos elementos. Isso é evidente também pela capacidade que nós temos de ampliar nosso repertório visual, pelo compromisso que temos de passá-lo adiante. Assim como um escritor tem um compromisso com a preservação da língua escrita, nós designers temos um compromisso com a preservação da cultura visual. Além disso, é importante alimentarmos esse repertório com as referências que as pessoas têm – e elas são inúmeras, vêm de caminhos os mais diversos possíveis, tropeçamos nelas o dia inteiro.

Se formos um pouco menos elitistas – e o olhar não é elitista, ou seja, não elegemos o que vemos, apesar de selecionarmos o que gostamos; vemos o que passa na frente, o público vê o que passa na frente – perceberemos que tudo vale: Marcel Duchamp, Kurt Schwitters ou uma colagem no quarto de uma criança, uma coisa pintada na rua, um rótulo, tudo isso faz parte do universo visual que nos permeia. Estamos mergulhados nisso. Nosso trabalho é editar essas imagens e articular esses signos para ajudar a criar um certo repertório, estabelecer umacomunicação visual. É nesse terreno que surrealismo e dadaísmo se misturam, porque estamos falando de símbolos e a linguagem simbólica é sugestiva. Quando você descontextualiza uma coisa como esses movimentos faziam, joga uma luz nova sobre aquilo. Esse trabalho é fundamental.

Acho ótimo que o design esteja incorporando isso. Essas vanguardas já têm quase cem anos e isso já foi absorvido há algum tempo por grandes designers – aliás, grandes designers que eram considerados mais ilustradores que designers: Cassandre era um grande ilustrador; Paul Rand, genial. Não faziam parte de uma escola funcionalista, suíça ou germânica, mas tinham um diálogo com a comunicação que beirava a arte, a ilustração e a publicidade. Nesse aspecto, talvez, nossa visão do design esteja se afrouxando um pouco dentro de uma perspectiva brasileira; talvez estejamos conseguindo conversar um pouco mais, saindo de um certo gesso. Isso não significa estar perdendo a compostura; ao contrário, estamos ganhando autoridade no que fazemos, começando a aumentar nosso repertório visual e a incorporar elementos que antigamente não faziam parte do design e não eram bem-vindos.

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Gostaria que você comentasse a relação entre as idéias defunção, que sempre foi uma pedra de toque do design moderno, funcionalismo, e uma terceira, que você parece defender em seu trabalho: funcionalidade.

Interessante – nunca refleti muito sobre isso. A funcionalidademe soa como uma coisa mais pragmática, descartável, talvez um pouco mais imediatista. O moderno peca por se prever eterno. Ao pensar numa forma perfeita, você se autoinveste de um caráter de eternidade muito grande, como se a perfeição existisse. É uma contradição absurda do Modernismo, porque assim ele deixa de ser moderno. O funcionalismo está muito ligado ao moderno. A função está menos vinculada a uma escola mais ligada à essência do objeto. Forma, função e aplicação são coisas essenciais. As coisas têm que ter função. A respiração tem função, o ar tem função, os objetos têm que ter função.

Nunca questionei muito a relação entre forma e função, mas sempre duvidei que ela resolvesse todos os problemas. Quando você começa a perceber o design fora da teoria e dentro da prática, como uma ferramenta de comunicação, ele passa a existir no dia-a-dia, a andar na rua e a tropeçar com a mídia e com tudo o que se encontra no meio disso. São elementos mais imponderáveis e menos perfeitos. A relação forma-função clássica pressupõe um equilíbrio muito perfeito. É como o desenho de um ovo. Está tudo muito resolvido ali. Ninguém pode mexer senão desequilibra. Talvez a funcionalidade seja mais pragmática, efêmera e passageira e talvez por isso um pouco mais próxima da realidade. Ela é menos romântica, mais desprovida de uma aura de purismo e talvez mais pé no chão.

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Na matemática, a função é uma correspondência direta entre dois elementos. No mundo das imagens, um tipo peculiar de função se estabelece entre as imagens vendidas pelos famosos bancos de imagem e certas mensagens textuais ou ideológicas. De um modo geral, essas imagens servem apenas para traduzir mensagens: estão menos no campo da imagem e mais no da textualidade, são ilustrações literais ou funcionais. O seu trabalho parece ir na contramão desse tipo de relação. Nele, as imagens quase nunca são o que parecem. O cartaz para a 21ª Bienal de São Paulo e a capa do número especial da revista Big sobre o Brasil são exemplos disso. Além de gerar impacto, essas imagens também ganham permanência, pois se mantêm como fonte de interesse e questionamento para quem as vê. Qual é o papel desse tipo de imagem no contexto da comunicação contemporânea?

Numa palavra, inclusão. Os processos de comunicação estão cada vez mais se transformando em processos de informação. Isso é um problema. A informação é um processo unilateral e unidirecional. Já a comunicação é um processo bidirecional e inclusivo, que pressupõe uma resposta. Nesse sentido, as coisas nunca têm que estar completas. O perfeito é péssimo, a perfeição é um absurdo. Quando as coisas estão plenamente resolvidas você está passando um atestado de burrice para o leitor, porque não há espaço para ele. Os bancos de imagem são feitos disso. São de uma literalidade que exclui qualquer capacidade neuronial de quem vê. Tudo ali já está absolutamente digerido e dito. Noutras palavras, são imagens sem função. Uma imagem dessas pode funcionar para um anúncio publicitário, uma capa de relatório de empresa ou um cartaz de laboratório clínico. Se você trocar as imagens, elas terão a mesma função. Você pode vender um carro, uma conta de banco ou fazer extração de sangue com a mesma imagem. Não faz diferença nenhuma. Ela não significa nada. Está ali simplesmente para compor.

Mesmo com muito pouco tempo de comunicação de massas ou do que se chama de democratização dos meios de comunicação, conseguimos destruir a milenar frase chinesa “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Atualmente, uma palavra vale mais do que mil imagens. As imagens estão absolutamente desprovidas de conteúdo. Estamos vivendo um momento em que é necessário um trabalho de ressignificação das imagens. Temos acesso a imagens o tempo inteiro e elas estão cada vez mais vazias e desconectadas de seu conteúdo. Se você não tem a capacidade de atribuir conteúdo a uma imagem, então ele não existe.

Quando uso a imagem de um figo cortado na capa de uma edição da revista Big sobre o Brasil, não uso uma banana ou uma mulher, mas um fruto que, embora não seja necessariamente brasileiro, conota o natural e o erótico quando cortado. Quando essa capa causa estranhamento e faz com que algumas bancas de revista em Los Angeles se recusem a pendurá-la porque a consideram pornográfica, sei que a minha mensagem passou. Há uma mensagem subliminar ali sobre a qual não tenho controle. Alguém viu alguma coisa ali por conta própria. Eu não disse “esse figo cortado tem uma significação pornográfica”. Cabe a você ver o que você quer ver dentro dela. Aí a coisa fica interessante, porque você começa a lidar com a capacidade interpretativa de quem está vendo, com um público que não é passivo, mas feito de coautores, de pessoas incluídas na comunicação. Talvez essa seja uma fronteira com a música, porque ao ouvir música você pode dançar. Quando alguém vê uma imagem e interage com ela pelo estranhamento, algo semelhante acontece.

Já o cartaz da 21ª Bienal de São Paulo foi uma referência a repertórios oriundos da história da arte. Na verdade, trata-se de uma série. É um tríptico que contém três estátuas masculinas revisitadas em períodos diferentes na história da arte. Peguei O pensador de Rodin, que é o mais clássico, o Discóbolo e oMercúrio, e fiz três cartazes. Misturei O pensador de Rodin com um retrato do Magritte que adoro, em que ele aparece tampando o rosto com um tabuleiro de xadrez em cima da cabeça. Mas na verdade saiu errado e melhor, pois tinha pouquíssima grana para produzir e chamei um amigo fotógrafo que também topou fazer uma coisa mais experimental. Fotografamos na casa dele (não tinha verba para pagar a foto, não tinha como alugar estúdio, luz, nada disso). O modelo era outro amigo, que tinha acabado de tirar o gesso da perna e não podia ficar posando de estátua clássica equilibrada num pé só. Então dissemos: “vamos inventar algum assunto aqui, com os elementos que temos”. Para fazer isso, tínhamos que usar baixa luz combinada com fotos feitas com motor drive, o que resultou numa assincronia na hora da foto, e o obturador ficou aberto enquanto o filme andava: o negativo ficou comprido por um “erro” de fotografia e, pelo movimento inusitado na imagem. Ficou muito melhor e mais surpreendente do que a “foto que deu certo”. São acasos que acabo incorporando ao trabalho.

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Outro trabalho que mostra esse tipo de encontro é o cartaz do filme Bananas is my business. Nesse caso, parte do rosto da Carmen Miranda é substituído por bananas. Em vez de uma leitura literal do título, aparecem duas características do seu trabalho: uma atitude iconoclasta e um evidente senso de humor relacionado a esse tipo de operação. Qual o papel do humor e da irreverência na comunicação com um público mais amplo?

O cartaz existe para ser colado. Tudo tem que ser visto no local em que vai existir. Uma revista tem que ser pensada na banca, um livro na livraria, um programa de televisão na televisão. Esse cartaz foi feito para a exibição do filme nos EUA, onde os cartazes são colados em tapumes nas ruas. Tratava-se de um documentário ficcional sobre um grande mito pop brasileiro, uma figura conhecidíssima. Não fazia sentido fazer mais um trabalho sobre a Carmen Miranda mostrando a Carmen Miranda. Tinha que fazê-lo de outra forma, porque o filme mostrava uma nova Carmen Miranda a ser colada numa parede.

Parti desse princípio: Carmen Miranda diferente, colada na parede, ícone pop. Peguei uma foto clássica da cantora e a deixei completamente clara, impressa a dez ou cinco por cento, visível mas quase ausente. Reduzi a Carmen à boca da Carmen – porque seu sorriso, sua fala e sua voz a traduzem tanto quanto as frutas na cabeça – e pus em seus olhos as bananas do Andy Warhol da capa do disco do Velvet Underground, que para mim é um grande ícone, a síntese da representação pop da banana. (Costumo pegar algumas coisas e usar várias vezes, em vários trabalhos.)

Essa foi uma forma de ampliar o cartaz, porque quando os cartazes eram colados um ao lado do outro as bananas se emendavam e produziam uma dança. Olhando de longe o que se via não eram os cartazes da Carmen, mas uma longa seqüência de bananas e bocas vermelhas. Aí você se aproximava para ver, porque o cartaz não tinha cara de cartaz, mas de uma parede pintada de alguma coisa. Usei muito esse recurso nos cartazes de cinema que fiz em Nova York.

Foi assim também no cartaz que fiz para o filme Laberinto de Pasiones, de Pedro Almodóvar. No início da carreira, a estética do Almodóvar era muito carregada, muito kitsch. Eu, por outro lado, estava descobrindo os cartazes de cinema indiano. Esse filme, feito com muito pouca produção, não era o Almodóvar que conhecemos hoje. Foi lançado na sequência de Mulheres à beira de um ataque de nervos, que o trouxe para a fama mundial. Eu queria fazer um cartaz com a cara desse filme, cuja estética ia na contramão de todo cinema que víamos. Acabei fazendo uma colagem malfeita de elementos amontoados. Não era possível saber se os cartazes tinham acabado de ser colados na parede ou se estavam sendo arrancados para outros serem colados por cima. Essa relação do espectador com o cartaz é muito importante para a sua visualização.

Outro trabalho que fiz para o cinema nos EUA foi o cartaz de um filme chamado Boca del lobo, um filme político peruano sobre a luta armada, o Sendero Luminoso contra o exército peruano – aquela luta eterna, em que ora um, ora outro vencia a batalha; em que um estava visceralmente ligado ao outro para resolver uma questão intrínseca da história política peruana. Vi que o cartaz não precisava ser vertical, muito menos ter uma posição fixa, mas que podia refletir algo que ora está por cima, ora por baixo. Além disso, o cartaz político só se completa quando é colado na parede. Não adianta fazer um cartaz político se ele ficar colado dentro da sua casa. Às vezes, é mais difícil colar o cartaz político que fazê-lo. Fazer até que é fácil, comparado com quem vai colar e levar cacetada. Por isso, achei que essa seria uma oportunidade de incluir quem cola o cartaz no projeto, deixando indefinido o lado de cima e o de baixo, sem instruções claras. Isso foi muito legal, porque as pessoas colavam do jeito que queriam – às vezes de cabeça para baixo, às vezes de cabeça para cima, às vezes um para baixo e outro para cima. Não havia regra. Acho que essa inclusão é fundamental. Ser o autor final é bom, mas se você puder entender o autor final como um condutor do processo, a coisa fica muito mais interessante.

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Você costuma afirmar que, ao contrário daquilo que se diz da arte na era da reprodutibilidade técnica, uma das características mais definidoras do design não é a morte do original, mas a possibilidade de transformar a escala e as proporções das imagens. Segundo você, o design, mais que qualquer outro campo da cultura ou das artes visuais, é capaz de alterar o significado das imagens dessa forma. Porque esse é um atributo tão particular do design?

A mudança de escala foi uma abertura que encontrei para responder a um desafio proposto pelo curador Agnaldo Farias quando pensamos no projeto dessa exposição. Nossa idéia era fazer uma exposição que trabalhasse com a fronteira entre o design e as artes visuais e que pudesse explorar esse território de diálogo e contaminação. Vi que era mais interessante me debruçar sobre o processo de trabalho que sobre o produto final. A forma de responder visualmente a essa charada era encontrar um ponto em que as artes visuais aderissem e se diferenciassem das artes gráficas.

A escala e a proporção me pareceram elementos diferenciadores muito fortes, porque, além de incorporar a reprodutibilidade técnica, produzem um deslocamento e uma recontextualização que são específicas do design gráfico. As artes gráficas têm a capacidade de transformar um selo num cartaz e um cartaz num selo, só que ao fazer isso você não está simplesmente distorcendo a escala, mas a função, o uso, o contexto, o relacionamento com o entorno, tudo. Um cartaz não se cola numa carta; um selo não se põe na parede.

A questão do deslocamento tem mais diretamente a ver com o meu trabalho. Faz parte dele tirar uma coisa de seu contexto e colocar em outro. Falamos da colagem, de misturar e embaralhar referências. O cartaz do filme Boca del lobo, por exemplo, precisava de uma imagem desgastada. O original é do tamanho de um maço de cigarros, que foi ampliado na xerox até chegar a um tamanho reprodutível pela gráfica no formato final do cartaz.

O computador de certa forma nos dá o controle do tamanho final, mas antes do computador era preciso se valer de um espaço físico que iria virar outro espaço físico: uma arte final de dez centímetros tinha que virar um metro. Já havia um deslocamento, mas como a superfície não era digital, numérica ou escalável em curvas bézier, as falhas seriam ampliadas. Sempre vi essa falha na ampliação como informação, na medida em que ela carrega a memória do original. Em um processo de trabalho que lida com o simbólico, é importante conseguir identificar como as coisas são feitas. É interessante mostrar o processo do trabalho, usar o “truque” mas deixar algo à mostra, uma dica pra quem vem depois, como uma charada para ser descoberta. Sempre gostei de descobrir como as coisas são feitas e procuro fazer com que as pessoas possam se perguntar “como é que aquele cara conseguiu fazer aquilo?”.

O trabalho analógico permite isso mais que o trabalho digital. Ele tem um dado de imperfeição e lida com limites de uma forma muito mais concreta. No digital a origem pode ser disfarçada porque ela não existe, é numérica. O original existe no reino analógico mas não no digital. O que é um arquivo digital original? O que dá originalidade ao arquivo digital são as suas cópias.

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Existem alguns outros procedimentos estéticos que podemos identificar no seu trabalho. Em primeiro lugar, dificilmente as imagens aparecem isoladas, e quando isso ocorre elas não são o que parecem ser. Depois, raramente a tipografia aparece preservada ou em relação harmônica com a imagem. Finalmente, há uma energia produzida pelo atrito de sobreposições, transparências, recortes, vibrações, ruídos e acumulações, feitos com um cuidado evidente de não deixar que essa riqueza visual se transforme em confusão visual. Gostaria que você os comentasse não apenas como procedimentos estéticos, mas como algo valioso também para quem entende o design como negócio, considerando que a limpeza – uma antítese do seu trabalho –  foi e ainda é considerada por muitos um valor essencial do design.

Vou responder me esquivando um pouco da sujeira e da conotação negativa que a estética clean lhe atribui e falando de dois conceitos que desenvolvi e que foram a espinha dorsal de um projeto de reposicionamento de linguagem visual. Fui convidado pelo Ricardo Guimarães para fazer um projeto de linguagem que alinhasse todos os atributos éticos da Natura com sua expressão estética. A empresa é conhecida por seus compromissos com responsabilidade social, meio ambiente etc., que não eram visíveis na sua linha de produtos e comunicação. Já tinham um brand book, marca e arquitetura de comunicação institucional resolvida, mas não possuíam uma estratégia de comunicação de marca trabalhada. Sua identidade não se articulava como linguagem. Era necessário formular uma linguagem capaz de alinhar publicidade, fotografia, embalagem, editoração, internet etc. Para isso, parti de dois conceitos: obranco e o recorte. O resultado foi uma naturalidade controlada, que batizamos de “natural artístico”.

Para chegar a isso, foi também preciso mudar a forma de fazer as coisas. Não adiantava ter, por exemplo, um briefing da agência de propaganda descrevendo uma fotografia com um layout. Era preciso estabelecer uma relação diferente do fotógrafo com quem estava sendo fotografado, registrar uma relação real entre mãe e filho na hora certa e fazer uma espécie de documentário fotografado de uma relação íntima, real e de qualidade. Era preciso desafiar o fotógrafo porque, sem isso, ele iria fazer a foto de sempre, tecnicamente correta, mas isenta, distante, sob encomenda. A única forma que consegui encontrar para isso foi tirar da mão do fotógrafo o maior trunfo que a fotografia tem, a luz, obrigando-o a trabalhar em meio a uma luz sem controle, total, branca, estourada. Expor o fotógrafo a uma situação de risco, sobre a qual o controle técnico era limitado, exigia soluções criativas, com mais envolvimento artístico. Se o “branco” por um lado traduzia alguns dos atributos essenciais da Natura – da transparência empresarial  à pureza e a clareza atribuídos à cosmética – por outro ele mostra também a impureza, a sujeira, a foto sem delimitação, toda a imperfeição da “mulher de verdade”, real, com rugas, tudo isso. Esse eixo estético tem a ver com um eixo ético da empresa. Esse foi o desafio: fazer com que a foto pudesse representar esteticamente um atributo da empresa a partir da atitude do fotógrafo.

Uma outra atitude da fotografia relacionava-se à representação da realidade. Não era suficiente ter uma mãe de castingbeijando um filho de casting. Era preciso ter mãe e filho reais beijando-se com o envolvimento real, com a verdade daquela relação. Requeria um olhar documental, acreditando ser possível atingir no registro de um frasco de perfume a força autoral de um Pierre Verger. O imenso e inatingível desafio era esse, mas era preciso incluir dramaticidade, e essa dramaticidade se traduzia em recorte. Esse foi o segundo elemento capaz de definir esteticamente a empresa dentro de sua visão de mundo em qualquer contexto. Afinal, se um frasco de perfume de camamu com 25 ml vale quanto vale é porque contém o trabalho de quem colheu, da cadeia produtiva, do compromisso da empresa etc. Seu valor não é só o líquido que está ali, mas o trabalho de extração e tudo mais. Aquilo é umrecorte de um processo muito maior que os mililitros dentro do frasco. Esse trabalho de conceito visual solidificou e deu base a um projeto de linguagem de marca que alinhou das agências de propaganda e fotógrafos, até a estratégia de posicionamento de marca para o Mercosul, França, linhas de produtos, embalagem, tudo. Foi mais de um ano de trabalho de posicionamento, de oficinas e de alinhamento  para poder aplicar esses conceitos de “branco” e “recorte” dentro de uma estratégia de branding da marca. Tudo isso, no entanto, foi fruto de um trabalho de conceituação visual que tem muito a ver com a sujeira que você mencionou, porque a imperfeição estava lá naquelas foto sujas e recortadas, muito embora brancas e puras. Assim, produzi conceitos e construí processos, mas muito pouco design no sentido de produto final.

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Você afirma em várias ocasiões que “design é mais do que valor agregado”. O que isso quer dizer?

O design pode ser mais, menos, ou apenas valor agregado. Num sentido mais amplo, o design tem um valor agregado não apenas do ponto de vista do mercado, do consumo e do uso, mas também da história por trás de algo, de seus significados culturais, conteúdos simbólicos e forma de produção. Esses valores, embora sejam agregados, não são tangíveis, não têm um medidor preciso ou objetivo. Já falamos aqui da formação de repertório. Isso não é apenas valor agregado, ao menos no curto prazo. A percepção de valor agregado está muito ligada ao curto prazo, mas temos uma contribuição a dar para a história do design, que é de longo prazo. O design não é feito apenas para o mercado. É mercado, cultura, tecnologia. Ele se articula no equilíbrio de várias coisas. Quando o seu trabalho faz alguém pensar sobre algo, por exemplo, ele ultrapassa a noção de valor agregado.

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No seu trabalho, a tipografia raramente aparece com a pureza do tipógrafo, mas também é raro vê-la caligrafada, com a marca pessoal do autor.

Para mim a tipografia é uma descoberta até certo ponto recente. Nunca tive o esmero, o tempo e o tesão do meio tipográfico. Faz apenas dez, quinze anos que a tipografia começou a se revelar para mim. Foi no Royal College que a tipografia passou a ter um significado maior que a forma de escrever palavras. Isso veio por dois canais: Gert Dumbar, que trabalhava a tipografia com a facilidade, o humor e a soltura de um mestre-sala, com uma liberdade de quem entende; e Phil Baynes e David Ellis, que eram meus colegas de classe e ficavam montando fontes, mergulhados na oficina tipográfica compondo com tipos de chumbo durante o dia, enquanto molhavam os pés nos primeiros computadores à noite. Phil fazia mensalmente um cartão-postal tipográfico e distribuía aos colegas. Ficava o dia inteiro na oficina de tipografia. Seu trabalho de formatura foram duas velas enormes feitas de cera tipográfica, que iam queimando toda sua tipografia durante a apresentação. Era estimulante conviver com experiências da vanguarda gráfica – como a revista The Face – que se resolvia em boa parte no papel vegetal.

Gert Dumbar fazia trabalhos que misturavam tipografia impressa com letras tridimensionais fotografadas e letras que eram sombras tridimensionais. Fazia projetos de identidade para empresas do nível do Automóvel Clube Holandês, nos quais resolvia trabalhar com um grid de 61,5º porque assim lhe dava na telha – e a empresa topava! Era um alto grau de experimentação de países onde o design conseguia fazer esse tipo de brincadeira a sério. Foi aí que comecei a perceber que a tipografia fazia sentido do ponto de vista expressivo. Por outro lado, nunca quis me aprofundar na história da tipografia porque sempre a percebi dessa forma, como um elemento de expressão e composição visual.

Uma vez, por exemplo, fiz uma embalagem para um perfume do Boticário chamado Insensatez em que o nome do produto aparece escrito de cabeça para baixo no vidro. O frasco de perfume é colocado de cabeça para baixo na caixa que não tem nenhuma indicação do nome, mas sim uma janela onde se vê o que vem impresso no frasco, de forma que só é possível dar-se conta de que o perfume está naquela posição ao abrir a embalagem. Esse jogo de sentido entre o perfume e o seu nome é puramente tipográfico.

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É, mas essa pureza não tem nada a ver com a pureza tipográfica da Escola suíça.

Claro, mas isso também é exigir de mim o que eu não sou.

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O caráter autoral do seu trabalho abre brechas para taxá-lo como mero artista gráfico ou ilustrador. Existem vários artistas gráficos restritos a um campo que é de fato menor, não no sentido de que o que produzem não pode ser grande, mas no de que estão limitados a um universo bem menos abrangente que o preconizado pelo design moderno. Muitos exemplos mostram que, embora autoral, seu trabalho tem um domínio de escala atribuído a designers, digamos assim, de grande porte. Gostaria que você comentasse isso.

Essa eventual pequenez do artista gráfico reside numa questão de mercado. Isso ocorre porque o artista gráfico não tem o suporte de marchands, de uma corporação ou de uma estrutura mercadológica maior como ocorre com as artes plásticas, o design corporativo, a publicidade. Essa pequenez é absolutamente falsa, porque não está ligada à qualidade do trabalho, mas à temporalidade. A arte gráfica existe em mídia impressa efêmera. O cartaz e a revista são coisas que não duram. Não são uma Monalisa, que tem cinco séculos, ou uma imagem empresarial, que vale bilhões de dólares ou consome rios de dinheiro em mirabolantes planos de mídia.

Meu horizonte não é carreirista. Nunca quis fazer nada a qualquer preço nem gosto de fazer da vida uma escada. O trabalho inclusivo faz parte disso: existem coisas para as quais vale mais a pena dizer sim do que não. Do ponto de vista criativo, sempre tive a inquietação e a vontade de mexer com coisas diferentes, trafegar por áreas distintas e resolver questões de forma mais pragmática, aliando repertório e criatividade. Assim, consigo trilhar esses caminhos todos de forma menos problemática, com mais desenvoltura, menos rótulos. Isso é complicado porque o mercado cobra essa rotulação e eu trafego num mercado mais híbrido. Há o designer que me considera publicitário, o publicitário que me considera ilustrador e por aí vai… Quando fui à França me perguntavam onde iria me encaixar; quando saí de lá também não sabiam onde me encaixariam. É curioso, porque o mercado exigia uma especialização criativa, mas não oferecia as condições que sustentassem a especialização dos criadores. Além disso, criação e especialização nem sempre se sentam à mesma mesa. Eu sempre tive necessidade e prazer em fazer as coisas que sei fazer e se faço coisas tão variadas é porque decidi muito cedo a sobreviver criativamente no mercado.

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Como mergulhar nas imagens sem se afogar?

É só sair nadando.

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* André Stolarski era designer e sócio-diretor da Tecnopop, onde desenvolvia projetos nas áreas editorial, expositiva e de identidade visual. Concebeu e desenvolveu o volume Alexandre Wollner e a formação do design moderno no Brasil e adaptou para o português o livro Elementos do estilo tipográfico, de Robert Bringhurst, ambos editados pela Cosac Naify em 2005.